top of page

Parte 3

Baiço

Quando o sinal da escola toca, marcando o fim da aula, eu juro que escuto o meu estômago tocando junto de tanta fome. Não consigo evitar, eu estou sempre com muita fome, da hora que eu acordo até a hora de ir dormir.

Ontem, eu até perguntei para a minha prô sobre toda essa fome, achei que ela conseguiria me ajudar, já que é a pessoa mais inteligente que eu conheço no mundo todo, e a mais linda também.

 

Estávamos no meio da aula de matemática quando todos ouviram:

 

- Brrrrr! – era o meu estômago falando.

 

Meus amigos pararam o que estavam fazendo e começaram a rir tão alto quanto meu estômago. Eu não aguentei e acabei rindo junto.

 

- Prô, por que será que eu sinto tanta fome? – perguntei segurando a risada.

 

Antes de começar a me responder, ela começou a rir, assim como a maioria das pessoas faz quando eu quero tratar algum assunto sério. Não entendo.

 

- É normal, Maurício. Não se preocupe com isso – ela falou.

- Será? Eu sinto muita, muita, muita fome. Especialmente fome de doces. O tempo inteiro – continuei falando, sério.

- Você sente muita fome de doces? – ela perguntou rindo.

- Sim, o tempo todo – confirmei.

- Bom, acho melhor você conversar com a sua mãe sobre toda essa fome. Tenho certeza de que ela conseguirá te ajudar mais do que eu – ela disse.

 

Fiz que “sim” com a cabeça.

 

Minha prô é alta, tem cabelos castanhos e olhos castanhos que brilham junto com o Sol, é a mulher mais linda que eu já vi em toda a minha vida. Inclusive, ela até já foi miss São Paulo. Ela está sempre muito bem-vestida, com saia até a altura do joelho, camisa de botão, salto alto e cabelo impecavelmente preso.

 

Assim que ela conseguiu parar de rir com a minha pergunta (que até agora não entendi onde estava toda a graça), ela me falou que provavelmente o meu metabolismo é acelerado, então pode ser que comer mais vezes por dia me ajude. Eu não sei o que “metabolismo acelerado” significa, mas eu gostei muito dessa ideia.

 

Cheguei em casa, e falei para a minha mãe sobre isso, reforçando toda a teoria científica da prô, e lembro de usar a minha cara de menino sério e inteligente, que eu guardo para os momentos certos. Não tinha como dar errado, agora eu teria comida para o dia todo, e com certeza mais balas e doces também.

 

- Mãe, preciso muito conversar com a senhora. Por favor, sente-se – falei usando a minha cara especial, enquanto apontava para a cadeira da cozinha.

- Tá bom – ela respondeu sem nenhuma reação, e se sentou.

- Obrigado pela sua atenção. Seguinte, chegou ao meu conhecimento de que eu tenho um metabolismo acelerado, então algumas coisas vão ter que ser diferentes daqui para frente.

- Tá bom... – ela respondeu pacientemente, enquanto olhava para mim.

- O meu café da manhã precisa de mais pão. No lanche que eu levo para a escola, sinto falta de ter geleia de mocotó, que você sabe que eu adoro e me dá a força que eu preciso para continuar meu dia...

- Tá bom... – eu jurava que ela estava segurando uma risada aqui, mas provavelmente eu estava errado, porque o assunto era sério.

- O almoço nunca está pronto quando eu chego, e isso me deixa muito decepcionado, porque eu dei duro a manhã toda e, a essa hora, já estou com tanta fome que nem consigo explicar.

- Uhum, continue... – ela disse pressionando os lábios.

- Ah, e precisamos caprichar mais também nos lanches da tarde e no jantar, porque eu sou um menino muito ativo, e estou sempre gastando muita energia.

- Ok, só isso?

- Bom, acho que estamos conversados. Agradeço imensamente a sua atenção neste assunto de extrema importância. A senhora pode se retirar agora.

- Ok, obrigada. – ela se levantou e foi terminar de lavar a louça.

 

Eu sabia que nossa conversa tinha dado certo, então hoje já comecei o meu dia animado para muita comilança. Coloquei a roupa do meu uniforme, camiseta polo branca, bermuda azul marinho, meias brancas até a panturrilha e meu sapato que, por sinal, estava limpíssimo, a minha mãe tinha limpado ele no dia anterior. Passei pomada no meu cabelo até ele ficar bonitão para trás e corri até a cozinha para tomar café e pegar a minha lancheira.

 

A minha mãe e o meu pai já estavam sentados tomando uma xícara de café, e o Marquinho ainda estava penteando o cabelo no quarto. Sentei, peguei um pouco de suco de laranja que a minha mãe tinha acabado de preparar, e percebi que na mesa só havia quatro pães, um para cada – já fiquei decepcionado.

 

Mas tudo bem, peguei o pão, passei a manteiga que eu adoro e tomei o meu café da manhã sem falar nada. Ela merece mais uma chance.

 

O Marquinho e eu terminamos o nosso café, escovamos os dentes, pegamos as nossas lancheiras e saímos em direção à escola. Eu e o Marquinho sempre vamos juntos, ele gosta de andar devagar e eu gosto de ir bem rápido, então resolvemos no “pedra, papel e tesoura” como vamos. Hoje, deu empate três vezes seguidas.

 

- Vamos andar e correr – eu sugeri animado.

- Isso, a gente vai revezando.

 

Andamos e corremos, andamos e corremos e, pronto, 10 minutos depois já estávamos na escola. E eu já estava morrendo de fome – acho que foi o exercício matinal.

 

Atravessamos o gramado da escola até a porta da lateral, onde fica a sala do meu irmão.

 

- Marquinho, boa aula. Na hora da saída, me espera na porta da sala para eu te buscar, combinado? – eu falei.

- Tá bom, Baiço. Boa aula.

 

Dei um abraço nele, e entreguei a lancheira que estava comigo.

 

Estudamos em uma escola pública muito grande. São muitos corredores e os alunos maiores ficam separados dos menores. A minha sala fica a dois corredores compridos de distância da sala do meu irmão, então eu levo mais uns dois minutos de caminhada. Se o Marquinho fosse um ano mais velho, seria do mesmo corredor que eu.

 

Cheguei na porta da minha sala e meus amigos estavam comentando da última edição que cada um tinha lido do seu gibi preferido. Peguei meu Tio Patinhas da mochila e me sentei com eles no chão, para nossa roda matinal de gibis.

 

- Qual é, João. Tio Patinhas é muito mais legal do que Popeye. Ele é um personagem com muito mais história.

- Os dois estão errados – retrucou o Vinicius – ninguém é páreo para o Super-homem.

- O que? – gritou a Maria – todos estão errados. Bom de verdade é A Turma da Mônica, ninguém ganha do Maurício de Sousa. Esse ano, as histórias dele estão em gibis e é incrível.

 

Tinha que vir a Maria para acabar com a discussão. Realmente não tem como argumentar contra A Turma da Mônica. Ele é um gênio.

 

O sino de início da aula tocou, a prô foi até a porta pedir para todos entrarem, então fizemos uma filinha e entramos um a um, sentando-se em nossas carteiras pré-determinadas.

A primeira aula de hoje foi de matemática, depois duas de português, parecia que o dia não ia acabar mais.

 

Finalmente o sinal do intervalo tocou e a prô nos liberou para comer. Eu já estou cheio de fome, para variar. Peguei a minha lancheira animado para comer minhas geleias de mocotó que eu tanto gosto, e fui com meus amigos para o pátio da escola.

 

A minha lancheira é azul e tem divisórias dentro. Sempre está bem-organizada, com pães, frutas e algum docinho que eu gosto. O único problema é a quantidade, que eu acho muito pouco.

Destravei o fecho da lancheira e, ao abri-la, mais uma decepção: havia só algumas bolachas de água e sal, um suco de caixinha e duas bananas. Como uma criança consegue se alimentar com só isso de comida?

 

Não dá. Comi tudo e a minha barriga ainda ficou roncando.

 

Voltei para a sala triste por não ter comido as geleias de mocotó que eu tanto queria e agora vou ter que aguentar até o fim da aula para almoçar. Mais uma eternidade até a hora passar.

 

O sinal bateu, já eram 12h em ponto, hora de ir embora.

 

Joguei meu material dentro da bolsa e saí correndo segurando as alças da mochila para elas não escorregarem das minhas costas, passei na porta da sala do Marquinho e ele já estava me esperando.

 

Saímos de mãos dadas, “pedra, papel e tesoura” e, para o meu azar, voltamos andando para casa.

 

Chegamos no portão de casa, passamos pelo corredor e deixamos os sapatos sujos para fora. Entramos com as mochilas até o quarto e deixamos as duas em cima de um tapete que divide as nossas camas.

 

Voltamos para a cozinha e foi aí que me dei conta de que o pior tinha acontecido, a panela do feijão ainda estava ligada. Pronto, o meu mundo desabou por completo.

 

Eu não sou nenhum especialista em cozinhar e nem em feijão, mas já entendi uma coisa: se a panela ainda está ligada, eu ainda vou demorar para comer. E só de pensar nisso, já fico até arrepiado.

 

- Mãe, eu tô que não aguento de tanta dor na minha barriga, a comida ainda não tá pronta? – falei com olhar de desespero.

- Maurício, falta pouco. Vão lavar as mãos e o rosto e voltem que logo logo eu sirvo o almoço – ela respondeu calma.

- Mas mãe, pelo amor de nosso senhor, eu imploro para eu comer agora, minha barriga tá gritando aqui comigo.

- Eu já disse, só falta um pouco, vai lavar a sua mão que eu sirvo já já para vocês.

- Mas mãe, você não tá me entendendo, eu não consigo, eu não aguento, não dá – eu disse já ajoelhado abraçando as pernas dela com um dos braços, implorando pelo meu prato de comida, enquanto o outro eu usava para deixar sobre a barriga.

- Não exagera. Para agora, eu já vou servir – é, parece que a cena não tá dando certo, e eu posso estar muito enganado, mas eu juro que eu percebi um sorriso de canto de boca na minha mãe quando ela viu meu desespero.

- Mãe, por favooooor, por tudo o que há de mais sagrado nessa vida e pelo meu irmão que eu amo mais do que tudo, me dá comida – eu disse em uma mistura de desespero, risadas no meio de cada uma das palavras e um choro forçado.

Ela não aguentou e riu tanto que começou a soluçar. O Marquinho, que estava assistindo a tudo “de camarote” também caiu na risada e aí pronto, eu ri também. Ri tanto que a barriga começou a doer ainda mais.

 

Bom, eu podia ter parado por aí, mas resolvi continuar. Aos poucos, percebi que o sorriso da minha mãe estava indo embora e eu tenho certeza de que ela começou a enrolar para terminar o almoço, de propósito. Certeza.

 

Tentei mudar a minha abordagem e pedir delicadamente, com muito amor e cuidado para ver se daria mais certo.

 

- Mãe, por favorzinho, me dá qualquer coisa para comer até tudo ficar pronto.

- Não, você tem que esperar, não faz nem 5 minutos que você chegou em casa e já conseguiu tirar a minha paciência.

- Então, mas tipo... se você me der algo para comer, eu paro.

 

Quanto mais eu falava, mais ela fechava a cara, então eu tentei mudar de novo minha estratégia. Se ela não está comovida com a minha fome, como ela ficaria se os vizinhos soubessem? Vamos tentar isso, então. Uma ótima ideia.

 

Levantei-me do chão, sem falar nenhuma palavra, e fui descalço até uma pequena parte do muro que o portão grande fica preso. Subi nele e me sentei com as pernas viradas para a rua. E comecei a colocar a ideia em prática.

 

- Minha mãe não me dá comida. Alguém me ajuda pelo amor de Deus – eu gritei tão alto que parecia até que meus pulmões iam explodir.

 

Esperei alguns segundos e comecei a gritar de novo.

 

- Minha mãe não me dá comida. Alguém me ajuda pelo amor de Deus.

Eu gritei tão alto e de forma tão convincente que os nossos vizinhos começaram a sair de casa e ir até a frente do meu portão, para verem o que estava acontecendo.

- Maurício, o que foi? – perguntou a dona Rosa, uma senhora bem intrometida, que tem 82 anos. Ela adora espiar a vida de todo mundo, e eu estava dando um prato cheio para ela.

- Dona Rosa, a minha mãe não me dá comida – falei sério, olhando diretamente para os olhos dela.

 

Ela ficou espantada, mas não disse mais nada.

 

A essa altura, toda a vizinhança já estava na frente da minha casa, tentando entender o porquê de toda a minha gritaria.

 

Eles perguntavam o que estava acontecendo, eu explicava e eles continuavam na frente de casa, para assistir o que ia acontecer depois.

 

Eu já estava preparando os meus pulmões para o terceiro grito, quando eu escuto uma voz ainda mais alta do que a minha, gritando de dentro da minha casa.

 

- Maurício, eu juro que eu vou te matar, para de gritar agora – a minha mãe falou, mais furiosa do que nunca.

- Eu não paro! Eu vou morrer de qualquer jeito, estou sem comer há muito tempo para sobreviver – eu falei, decepcionado.

 

Ela riu nessa hora, certeza.

 

A dona Rosa arregalou os olhos de novo e colocou as duas mãos na boca, assustada com a discussão e surpresa da minha mãe ter dito que ia me amar. Pobre, dona Rosa, não está sabendo nem da metade.

 

- Dona Rosa, ela não vai me matar, não. Ela me ama. Não se preocupe, tá tudo sob controle – eu falei para acalmá-la.

- Eu vou matar sim, dona Rosa. Olha o escândalo que você tá fazendo, Maurício. Precisa disso? – a minha mãe falou.

- Precisa. Ontem, eu repassei tudo com a senhora. Expliquei que ando com muita fome, e a senhora disse que resolveria tudo. Mas não resolveu. O que mudou? Nada – eu estava sem acreditar.

- Dá comida para ele, Nazira. Pobre menino – gritou a dona Rosa, apoiada pelos vizinhos que continuavam aproveitando o nosso show.

- Entra já que eu vou te dar comida. Pronto, você vai comer – ela cedeu.

- Tá bom – respondi feliz, certo de que dessa vez eu finalmente tinha ganhado.

 

Os vizinhos aplaudiram o final da nossa história e eu estava muito feliz por conseguir vencer, ao menos, uma vez a genialidade da minha mãe. Dessa vez, eu que tinha sido genial.

Agradeci aos aplausos, curvando o meu corpo para o meu público, que parecia satisfeito com o desfecho da história.

Quando entrei em casa, minha mãe serviu o prato do Marquinho e me deu uma baguete grande para comer.

- Você vai comer ela inteira e só depois você vai almoçar – ela falou séria.

- Mas se eu comer tudo, não vou conseguir almoçar – eu retruquei.

- Ah, vai, sim. Você está morrendo de fome, não é? Não come há horas, como você mesmo disse. Você vai comer a baguete e almoçar depois.

- Não sei se eu estou com taaaaanta fome, assim – falei.

- Pode pegar o meu prato, Baiço. Eu como depois – o Marquinho falou calmo.

- De jeito nenhum, Marcos. O Maurício vai comer a baguete primeiro e se aguentar vai comer a comida – minha mãe falou inconformada.

- Me dá só um minuto – falei levantando e correndo até o meu quarto.

Voltei só de cueca e falei:

 

- Para caber mais comida.

 

A minha mãe caiu na gargalhada e entrou na brincadeira:

- Tá bom. Eu deixo você comer só de cueca. Eu te desafio. Duvido que você consegue comer a baguete e a comida.

- Desafio aceito – respondi olhando fixamente para os olhos dela.

- Vai, Baiço. Você consegue! – gritou o Marquinho.

- Mãe, se eu conseguir, amanhã você vai colocar duas geleias de mocotó na minha lancheira? – tentei negociar.

- Vou! – ela respondeu animada.

 

Eu me sentei à mesa, afrouxei o laço da minha cueca e comecei a comer.

 

Para a minha surpresa, mesmo depois da baguete ainda tinha muito espaço. Devorei o meu prato de comida e finalizei com uma geleia de mocotó.

bottom of page