top of page

Parte 2

Marquinho

A mamãe começou a preparar o almoço cedo hoje, não são nem 11h da manhã e a casa já está com um cheiro forte de galinha ensopada por todo o canto, o prato que o Baiço mais detesta.

Ele estava sentado no tapete da sala, ouvindo e cantando a música do Erasmo Carlos no último volume, uma das suas cantoras preferidas e que está tocando em todas as rádios esse ano, quando ele finalmente sentiu o cheiro da comida.

 

- Ah, não! Vai ter galinha de novo hoje? – ele gritou, se levantando do tapete e indo em direção à cozinha.

- Maurício, não começa, e volta para a sala para ouvir sua música. Não me atrapalhe – a mamãe respondeu.

- Tá bom. Mas só porque está começando a música do Erasmo Carlos – disse se sentando novamente no tapete da sala.

 

Eu não conheço ninguém que goste tanto de música quanto meu irmão. Quando ele não está brincando na rua, ele está na frente do rádio, sempre com o volume no máximo, cantando junto. A voz dele é rouca e bem desafinada, mas ele sempre acha que está arrasando.  

 

Quando começou a tocar o refrão da música da Wanderlea, ele correu para a cozinha, pegou uma colher de pau e voltou para o tapete o mais rápido possível. Agora, a colher era o seu microfone e, incrivelmente, a voz dele ficou ainda mais alta e ainda mais desafinada.

 

- Marquinho, canta comigo. Vem! – ele me puxou – você é meu backing vocal.

 

Eu também canto muito mal.

 

- Por favor, pare agoraaaaa... senhor juiz. Pare agoraaaa – cantamos com muitos mais “as” do que, provavelmente, deveríamos.

 

A cada refrão, o Baiço puxava a colher de pau para a boca dele, e nas partes que ele não lembrava a letra, ele passava a colher para mim, praticamente colocando dentro da minha boca.

 

O Fusca estava no nosso pé, quase cantando junto com a gente, balançando o rabinho e soltando alguns latidos nos refrões desafinados.

 

Quando eu achei que tinha terminado, começou “Jesus Cristo”, do Roberto Carlos, e meu irmão ficou doido. A colher de pau escapou da mão dele na hora que ele falou “estou aquiiiiii”, bateu no teto da sala e caiu direto na cabecinha do Fusca, que olhou assustado para o meu irmão na hora, mas depois voltou a latir animado e balançar muito o rabo.

 

O Baiço pegou o Fusca no colo e começou a cantar com ele, intercalando a colher de pau com nosso cachorrinho.

 

O Baiço está muito bem-vestido hoje, com uma camisa de botões de manga curta branca, bermuda de sarja bege que vai até o umbigo com cinto marrom para combinar, meias brancas que vão até a panturrilha e, nos pés, o Conga. Para completar, a mamãe até o obrigou a tomar banho de manhã, então o cabelo também está impecável, o que só acontece quando a mamãe realmente insiste. Caso contrário, ele costuma estar todo sujo e com roupas rasgadas.

 

Meu irmão é mais baixinho do que qualquer amigo dele, é magrelo, tem a pele mais pretinha do que a minha e cabelo crespo, que ele nunca penteia. Ele tem uma alegria contagiante, tem carisma de sobra e, apesar de aprontar muito e se colocar em risco o tempo todo, não tem uma pessoa que não goste dele.

 

Ele é um em um milhão.

 

Eu estou com uma roupa parecida com a do Baiço, a diferença é que minha camisa é bege e minha bermuda é marrom escuro, assim como minhas meias.

 

Se tivéssemos um microfone de verdade e cantássemos umas mil vezes melhor do que cantamos (sem puxar tantos “is”), até que enganaríamos bem como uma dupla de artistas. Mas por hoje, vai ser só a colher de pau mesmo.

 

- O almoço está pronto – a mamãe gritou da cozinha, interrompendo nosso grand finale.

- Jesus Cristo, eu estou aquiiiiiiii – finalizamos, agradecendo à plateia, fingindo que tínhamos uma

legião de fãs sentados no sofá vazio da nossa sala.

 

Paramos a cantoria, desligamos o rádio e fomos lavar as mãos antes de comer. Cada um se sentou em seu lugar já definido em nossa mesa quadrada. A mamãe leva isso a sério e nunca podemos trocar de lugar. Ela sempre fica ao lado do nosso pai e de frente para o fogão, eu fico de frente para ela e ao lado do Baiço e do nosso pai.

 

A mesa já estava posta quando chegamos, a galinha foi colocada em uma travessa de vidro grande, e tinha bastante batata e quiabo. O Baiço fez uma careta tão feia que até o Fusca se assustou. Eu não sei por que a mamãe insiste em preparar galinha nos almoços de domingo, o Baiço sempre reclama.

 

Eu, pelo contrário, acho uma delícia, mas guardo esse segredo comigo, porque se a mamãe souber que eu gosto, vai preparar sempre. Na semana passada, eu quase deixei escapar, foi um caos, e o meu irmão me fez prometer que não ia contar para ninguém:

 

- Marquinho, você gosta de frango? – ele cochichou assustado quando a mamãe deixou a mesa para ir buscar a salada.

- Não, Baiço, não gosto – falei evitando olhar nos olhos dele, com a cabeça baixa encarando a comida.

- Eu vi você lambendo seus beiços, fala a verdade para mim, e outra, você mente muito mal – ele falou preocupado.

- Baiço, eu acho uma delícia – finalmente entreguei a verdade, aliviado.

- Poxa vida, e agora? Só eu não gosto de galinha?

- Acho que sim, viu. Mas por que você não gosta? A mamãe coloca vários temperos, fica tão bom.

- Não sei, acho muito ruim e a aparência é o pior para mim, especialmente em dias de galinha ensopada. Mas Marquinho, o mais importante é você prometer para mim que você nunca vai contar que gosta de frango, por favor.

- Baiço, você sabe que eu não sei mentir, eu fico todo nervoso e acabo me atrapalhando todo.

- Você não precisa mentir, só não precisa falar que gosta. Promete?

- Tá bom, eu prometo. Pelo menos, prometo que vou tentar, pode ser?

- Pode – ele falou um pouco mais aliviado.

 

Promessa é coisa séria para mim e o meu irmão sabe disso. Especialmente quando é com ele. Mas como eu ia conseguir segurar esse segredo se eu minto tão mal? Eu precisava bolar um bom plano.

 

Passei toda a última semana pensando o que eu poderia fazer para despistar, até chegar em uma ideia genial, e pedi para o meu irmão me ajudar com o plano.

 

- Baiço, tive uma ideia! Mas preciso de você. E se eu falar que eu amo as galinhas tanto, tanto, tanto, que seria incapaz de comer uma? Pensei que, para começar, podemos dar um bom nome para a galinha gorda, que eu sempre brinco quando chego da escola. O que acha? – eu sugeri.

 

- Acho genial, Marquinho! E como vamos chamá-la? Já pensou em um nome? – ele perguntou.

 

O nome escolhido foi Filó. Ela deve ter mais de 5,5kg (como eu disse, bem gorda), provavelmente perfeita para o abate, uns 50 centímetros de altura, com as penas pretas e um topetão vermelho, ela é a mais bonita de todas. A gente brinca de pega-pega todos os dias. A brincadeira é, basicamente, eu correr atrás dela, e ela tenta fugir de mim. É muito divertido.

 

Depois de alguns dias do plano ser colocado em prática, até meu pai e minha mão já estavam chamando nossa galinha pelo nome de Filó. Eu levei tão a sério que a mamãe até pediu para o meu pai fazer uma casinha para a Filó, separada das outras galinhas.

 

Em menos de uma semana, eu tinha conseguido promover a galinha gorda, que estava prontinha para a panela, a uma das primeiras galinhas de estimação da história. Esse é o tanto que a mamãe se preocupa comigo e quer me agradar o tempo todo.

 

O que eu não esperava era que a mamãe pouparia a Filó da panela, mas que ela não teria problema nenhum em preparar galinhas não batizadas por mim.

 

Mais um erro em um plano quase perfeito.

 

No fim, eu realmente acabei me apegando à Filó e, felizmente, não é ela

que está sendo preparada hoje, é uma galinha que eu ainda não tinha conhecido. Ela já está prontinha na panela, e acho que consigo comer, sem problemas.

 

Depois disso, todo mundo acha que eu quero proteger os animais e que esse é o motivo de eu não gostar de comer frango, eu mesmo ainda não estou muito convencido disso, porque eu posso devorar uma bela bisteca de porco e um peixinho grelhado tranquilamente, então não acho que eu vá me tornar um grande protetor dos animais quando eu crescer. Uma pena.

 

A mamãe serviu o prato de todo mundo e obrigou o Baiço a comer toda a galinha que ela tinha colocado para ele.

 

- Se não comer, não vai ter sobremesa – ela falou olhando diretamente nos olhos dele.

- Ah não, eu não sou nada sem um docinho, mãe. Não é justo – ele respondeu inconformado, e se esforçando para fazer uma carinha de dó.

- É justo, sim. Come tudo que eu fiz pudim de leite condensado para a sobremesa, seu doce preferido.

 

Ele comeu tudo e devorou duas porções grandes de pudim.

 

Ficamos sentados na mesa por quase uma hora, o nosso pai contou como estavam as coisas no trabalho, que eu e o meu irmão adoramos ouvir. O Baiço e eu falamos da escola e a mamãe ouvia a tudo com muito carinho. Quando resolvemos nos levantar, ajudamos a tirar a mesa e a limpar a cozinha.

 

Depois de todo trabalho feito e a cozinha organizada, o Baiço aproveitou para sair um pouco para a rua, para ver seus amigos.

A essa altura, ele provavelmente já estava se sentindo um peixe dentro de um aquário, e não via a hora de poder sair. Ele nunca perde uma oportunidade de brincar, fazer novos amigos e se divertir com todo mundo.

 

Eu preferi ficar em casa, conversando com a mamãe e a ajudando a preparar um bolo de fubá para a tarde.

 

Ela pegou a vasilha, o batedor, separou todos os ingredientes e colocou tudo em cima da pia da cozinha. Eu subi em uma cadeira para ajudá-la em tudo e aprendi muito!

 

Aprendi que o fermento tem que ser o último e que só pode mexer um pouco, para o bolo não “desandar”, apesar de eu não saber o que “desandar” significa. Também comi muita massa crua de bolo e aprendi que isso dá uma dor de barriga danada. Não recomento.

 

Sem eu perceber, já eram 5h da tarde, eu e a mamãe já tínhamos preparado bolo, pães de queijo, biscoitos de polvilho e uma deliciosa geleia de figo. Já estava na hora de o Baiço voltar para casa, para tomarmos o café e começarmos a arrumar as coisas para a aula de amanhã.

 

- Marquinho, você chama o seu irmão para vir comer? Ele deve estar jogando bola na rua – disse a mamãe.

- Claro, só um minuto. Preciso falar para ele tomar banho antes de se sentar?

- Você sabe a resposta, amor. Com certeza. Seu irmão vive todo sujo, da cabeça aos dedinhos dos pés.

- Tá bom, mamãe.

 

Fui até o portão e gritei ainda do lado de dentro, para evitar sujar meus sapatos de terra.

 

- Baiço, o café tá pronto. Vem logo que você ainda precisa tomar banho.

 

A mamãe costuma ser bastante exigente na hora de nos sentarmos à mesa para comer. Temos que estar sempre de banho tomado, roupas e sapatos limpos e cabelo penteado. Eu gosto muito disso, acho que mostra que respeitamos nossa casa e a refeição.

 

- Só mais 5 minutos, Marquinho – disse o Baiço enquanto tentava driblar o adversário no jogo de futebol de rua.

- Baiço, você tá perdendo, vem logo. A mamãe tá esperando.

- Mais um drible e... – antes mesmo de terminar a frase, o outro jogador veio por trás e passou um carrinho no meu irmão para ninguém botar defeito, foi perna direita com perna direita, e ele caiu de bunda no chão.

- É falta! – gritou o Baiço, sentado na terra e jogando os braços para cima.

- Aqui não tem juiz não, Maurício. Perdeu a bola, não tem choro – falou o Marcão, do time adversário.

- Pô, assim não, tem que marcar falta. Eu ia fazer o gol.

- Ia, Maurício – disse o adversário enquanto já corria em direção ao outro gol e chutou a bola direto no meio dos dois chinelos que marcavam as traves do gol improvisado, bem no meio da nossa rua.

- Goooooooool - gritaram todos os meninos do time adversário.

- Ah, Maurício, você tinha que ter levantado, ficou aí deitado – falou o Márcio, um dos jogadores do time do meu irmão.

- Mas não vale, tem que anular o gol – ainda resmugava o Baiço, sentado no chão, agora com as mãos na cabeça, inconformado.

- Que anular o quê?! Acorda – falou o Márcio.

 

O Baiço finalmente resolveu abaixar os braços e se apoiou no chão para se levantar. Quando ficou em pé, deu para ver a bermuda cheia de terra no bumbum.

 

O que o meu irmão provavelmente não sabe é que mesmo quando ele tenta segurar o riso, as narinas dele inflam delicadamente, e entregam o sorriso disfarçado. Nesse momento, ele sabia que ninguém marcaria a falta, mas queria ver até onde conseguia ir com isso e, quem sabe, até anular o gol por insistência.

 

O Baiço é um mal perdedor e faz o que precisar para ganhar, mesmo se tiver que fingir algumas lesões de jogo ou faltas a quilômetros de distância. Ele, diferentemente de mim, mente muito bem.

 

- Maurício, aprende a jogar bola, quem sabe da próxima vez você não ganha? – disse o Paulo, que era o mais velho dentre os meninos, com doze anos de idade.

- Eu nunca perco, Paulão, vocês roubaram. Eu sou quase o Rivelino, me respeita! – o Baiço respondeu ainda sorrindo pelas narinas.

- Ah, tá bom – finalizou o Paulo, enquanto soltava uma gargalhada que dava para ouvir no bairro todo.

 

Não tem como não gostar do Baiço, em poucos minutos ele consegue te contagiar com o sorriso que nunca sai do rosto dele, ele é alegre, de bem com a vida e faz amigos em um piscar de olhos. Ele tem tanta energia acumulada naquele corpinho que parece até que comeu cinco quilos de açúcar no café da manhã.

 

Os meninos da rua o adoram, e vivem chamando ele para qualquer brincadeira que aparecer, porque meu irmão é capaz de deixar até bolinha de gude divertido.

 

- Agora você vem, Baiço? – perguntei já cansado de tanto esperar.

- Sim, Marquinho.

 

Quando ele chegou em casa, foi direto para o banho, nem discutiu com a mamãe. Assim que voltou para a cozinha, ele se sentou na mesa e já começou a contar do jogo de futebol e a devorar os pães de queijo que ainda estavam quentinhos.

 

- Eu joguei muito bem, mãe, mas eles me roubaram. Era falta, o Marquinho viu. Não foi, Marquinho?

- Acho que sim, Baiço, não tenho certeza – eu respondi.

- Mas você não viu?

- Não vi muito bem, mas sempre que eu assisto aos jogos vocês acabam caindo no chão, então nem sei quando é falta mais.

- Foi falta, Marquinho, acredite.

- Mãe, da próxima vez você tem que ver, eu tô jogando muito bem.

- É mesmo? Vou ver, sim, pode deixar – respondeu a mamãe.

 

Sentei no meu lugar de sempre, ao lado do meu irmão, e começamos a falar como seria a escola, amanhã. Combinamos a hora que iríamos sair de casa, o caminho que faríamos e depois como voltaríamos. Nós sempre vamos andando juntos para a escola, mas essa seria a primeira vez que iríamos sozinhos. Eu e meu irmão somos melhores amigos desde que eu nasci, eu o protejo, ele me protege e é assim que funciona. Então sempre vai dar tudo certo.

 

- Maurício, pelo amor de Deus, eu estou confiando em você, cuide do seu irmãozinho, hein? – a mamãe falou para ele, com uma das mãos na testa e o olhar baixo, em direção à mesa.

- Claro, mãe, pode deixar. Palavra de irmão mais velho – o Baiço respondeu, colocando as mãos para cima, em sinal de juramento.

- Mamãe, não precisa se preocupar, eu também sei o caminho – eu falei, confiante.

- Marcos, nem pense nisso. Você não pode andar na rua sozinho, tá bom? – ela reforçou, preocupada.

- Tá bom, mamãe. Não vou andar sozinho – concordei.

 

Apesar do Baiço, às vezes, parecer distante da realidade, a mamãe sabe que ele faria de tudo para me manter seguro. Disso, ninguém duvida.

 

Acordamos cedo para começarmos a nos arrumar para a escola. O Baiço é mais prático do que eu, porque eu demoro uma pequena eternidade só para o meu cabelo ficar do jeito que eu gosto.

 

- Marquinho, vamos logo! Desse jeito, vamos nos atrasar – ele gritou, da sala, enquanto eu terminava de me arrumar no banheiro.

- Estou indo, Baiço – gritei, de volta.

Terminei de ajeitar o meu cabelo perfeitamente para trás, com uma pequena ondulação no topete.

- Tô pronto – falei animado.

Já na rua de casa, eu olhei para o Baiço e falei:

- Tive uma ideia.

- Eu amo as suas ideias, Marquinho. O que você pensou? – ele perguntou, curioso.

- E se todos os dias, começando por hoje, a gente escolher se vai andando ou correndo para a escola, no “pedra, papel e tesoura”? – eu sugeri.

- Adorei! – ele respondeu, animado.

bottom of page