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1970

Parte 1


Baiço

Acordei vítima de um complô entre o Fusca e o Marquinho.

- Lambe ele, Fusca, ele precisa acordar. Tá na hora de sairmos para brincar – disse o Marquinho para nosso vira-lata, os dois em cima da minha cama. O Fusca pressionando minha barriga com todo o peso do seu corpo e o Marquinho com metade do bumbum sentado ao meu lado na cama, me sacudindo para o lado. Eu mal tinha aberto os olhos e já sabia que seria um dia daqueles.

Meu irmão geralmente não é tão animado assim para sair para brincar, eu sim. Eu sempre quero ter gente por perto, fazer novos amigos e fazer as pessoas rirem, e costumo ser muito engraçado. Pelo menos, é isso o que eu e o Marquinho achamos. Ele é a minha melhor plateia, e quando estamos juntos eu fico especialmente hilário.

Eu nunca perco a oportunidade de conhecer pessoas novas e soltar uma boa piada, e essa é a minha marca registrada.

O Marquinho já prefere ficar em casa, brincar só comigo ou passar horas conversando com a nossa mãe. Ele é mais na dele, e tudo bem. Mas exatamente por isso que eu fiquei impressionado com o entusiasmo dele.

Quando eu finalmente consegui acordar, tudo começou a fazer sentido. Ainda deitado, eu podia ouvir um barulho de chuva intensa. Só chuva! Sem raios e até estava um pouco calor. Foi aí que eu comecei a entender onde tudo aquilo ia dar.

- Marquinho, que animação toda é essa? Que horas são? – eu perguntei.

- São 6h30 e, caso você não se lembre, hoje é sábado. Lá fora tá chovendo e você sabe o que isso significa, né Baiço?

- Seeeeei! Brincadeira no barro!

- Issoooooo! – ele completou.

Fiquei tão animado que dei um pulo da cama tão rápido que o Fusca voou para longe. Mas nem isso foi capaz de acabar com a animação dele. O seu rabo balançava rápido e, se cachorro sorrisse, eu poderia afirmar que ele é o cãozinho mais feliz de todos. O Fusca estava tão animado quanto a gente para um dia de brincadeira no barro.

 

O Marquinho me chama de Baiço, provavelmente por não conseguir falar o meu nome, mas eu acho esse apelido muito mais legal e eu adoro. Ah, e claro que só ele pode me chamar assim, é um combinado nosso.

Troquei o pijama por uma camiseta velha com furos na barriga e nas costas e um chinelo Havaianas maior que os meus pés, que minha mãe comprou um número maior para eu conseguir ficar pelo menos um mês sem precisar comprar sapatos novos. Ela fez a mesma coisa com o Conga, meu tênis preferido e que tá super na moda. Quando eu os visto, coloco duas meias para eles não escorregarem. Eu fico bonitão com eles.

 

O Marquinho vestiu uma camiseta polo branca e uma bermuda de sarja bege, as duas velhas e cheias de furos, e também pegou o chinelo Havaianas dele, que na verdade já tinha sido meu e agora ele usa.

Quase todas as roupas do Marquinho já foram minhas, aqui a gente reaproveita tudo, até não dar mais. Mesmo com as minhas roupas, é incrível como o meu irmão sempre parece muito mais bem vestido e arrumado do que eu. Ele é vaidoso, cheiroso e educado. Até o jeito do Marquinho andar é diferente das outras crianças, os olhos dele estão sempre olhando para cima, o nariz sempre empinhadinho e tem até um requebrado com o quadril em cada passada. Ele é um em um milhão.

- Marquinho, você penteou o cabelo? – perguntei, olhando impressionado para a ondulação perfeita que formava na parte de trás.

- Claro, Baiço. Você sabe que eu sempre saio de casa penteado – ele respondeu, enquanto passava a mão direita no topete, ajeitando para trás.

- Mas a gente vai brincar no barro, ué, e tá chovendo, o seu cabelo vai ficar bagunçado de qualquer jeito – falei inconformado, mas ainda impressionado com o penteado perfeito.

- Sempre arrumado, Baiço, sempre arrumado – ele respondeu com voz suave, olhando diretamente para mim.

 

O Marquinho tem a pele clara, é baixinho e magrelo para um menino de seis anos de idade, o cabelo dele é perfeitamente ondulado e castanho claro. Seus olhos castanhos e redondos são delicados e eu juro que são capazes de saber quando eu preciso de alguma ajuda, que pode ser desde algo que eu aprontei ou que eu ainda vou aprontar. E mesmo com esse dom, dessa vez ele que acordou inspirado para arriscar tudo por um pouco de barro.

A casa estava bem silenciosa e tínhamos certeza de que nossos pais ainda estavam dormindo, então resolvemos andar devagar, silenciosamente a caminho do portão da frente.

Nossa casa tem apenas dois quartos, o que eu e o Marquinho dormimos e o do nossos pais. Os quartos ficam nos fundos, depois vem a sala, a cozinha e a porta que leva para o corredor lateral, nossa rota perfeita de fuga. Ao final do corredor, tem um portão grande, que costuma ter dois cadeados reforçados, para proteger o carro do meu pai, e um portão lateral, que é pequeno e baixo, e é o que sempre usamos para nossas escapadas.

Sair de casa sem fazer barulho pode parecer uma tarefa difícil, mas eu já sou quase um profissional, a gente faz isso sempre e é bem fácil. Nossa mãe tem sono pesado e o portãozinho da frente só precisa de dois trancos para cima para abrir a fechadura – moleza, moleza!

Nosso maior medo é o nosso pai levantar, porque ele tem sono leve e costuma acordar às 5 horas da manhã, mesmo aos finais de semana. Até hoje, ele nunca nos pegou, a minha teoria é de que ele sempre ouve quando planejamos sair, mas não faz questão nenhuma de nos impedir, talvez ele até goste das nossas escapadas.

- Baiço, anda bem devagar, tá? Se a mamãe acordar, ela nunca vai deixar a gente brincar no barro – o Marquinho falou com olhar preocupado.

- Sim, Marquinho, mas para de falar. Confia em mim, vem na minha cola e, já sabe, né? Qualquer coisa, pode colocar toda a culpa em mim.

Eu sempre encorajo o Marquinho a jogar a responsabilidade para mim, eu acho que esse é um papel importante de ser irmão mais velho. Eu tenho um ano e meio a mais que o Marquinho, ele tem seis anos e eu já vou fazer oito. Sou muito mais maduro e inteligente que ele, e ele sabe disso.

Nós somos melhores amigos desde que ele nasceu, eu o protejo, e ele me protege. É assim que funciona. Às vezes, a nossa mãe acaba descobrindo de uma ou outra arte que fizemos, e aí eu tomo a culpa para mim, nada demais, eu até prefiro assim. É mais fácil se eles acharem que só eu apronto, assim o Marquinho consegue ir passando despercebido e todos ganham. Além disso, quando ele tenta falar, acaba estragando tudo, então eu prefiro comandar a situação.

- Baiço, eu não sei mentir, você sabe disso – ele falou ainda preocupado.

- Eu sei, por isso que você precisa ficar quieto se a mãe ou o pai acordarem. Combinado? – eu falei olhando fixamente para os olhos redondos do meu irmão, segurando os dois braços dele.

- Sim, Baiço – ele respondeu balançando a cabeça, confiante com a minha liderança.

Seguramos os chinelos nas mãos para fazermos o mínimo de barulho possível, abrimos lentamente a porta do quarto e agora não tinha mais volta, a nossa aventura estava prestes a começar.

 

Olhei para o Marquinho e coloquei a mão na boca, em sinal de silêncio, e começamos a andar bem devagar, eu na frente e ele logo atrás de mim. Ah, e o Fusca bem na nossa cola, copiando todos os nossos movimentos.

O Marquinho ficou congelado e ameaçou desistir quando percebeu que a porta do quarto dos nossos pais estava um pouco aberta, com uma fresta que dava para ver a nossa mãe deitada, dormindo. Olhei para ele e fiz um sinal de “joinha”, para ele confiar que daria tudo certo e, em seguida, acenei com as mãos para que ele continuasse me seguindo, para sairmos o quanto antes do corredor.

Finalmente chegamos até a sala, e vimos o relógio da parede que marcava 6h30 da manhã. Acho que esse era um novo recorde de crianças acordando cedo para brincar.

Continuamos andando devagar, até passar pela cozinha. Eu abri a porta que dá acesso ao corredor lateral com muita calma, para ela não fazer barulho. Chegamos à parte externa da casa, colocamos nossos chinelos no chão para calçarmos e continuamos em nossa missão até o portão da frente. Ao nos aproximarmos do portãozinho de ferro, começamos a puxar o trinco dele para cima.

- Um, dois, três, levanta – sussurrei.

- Um, dois, três, levanta – sussurrei de novo.

E pronto, portão aberto. Como eu disse, moleza!

Saímos para fora da casa e paramos um do lado do outro, olhando para aquele dia que ainda estava um pouco escuro (parecia que já eram 18h30) e chovia muito.

- Que chuva! – dissemos juntos, olhando animados para a nossa rua cheia de poças de lama e muito barro.

- Quanto mais, melhor – eu encorajei o Marquinho, que parecia querer desistir bem agora, depois de todo o trabalho feito.

- Tá certo, Baiço – concordou o Marquinho, com um sorriso discreto.

Descalçamos o chinelo, porque percebemos que não faria sentido nenhum brincar com eles, e sentimos o geladinho da terra em nossos pés.

 

A rua, que era toda de terra, tinha virado barro puro e perfeito para a sujeirada que estávamos planejando fazer. Não havia roupa velha que faria a gente sair impune dessa, mas qual é o mal de uma sujeira numa manhã de sábado, certo?

Brincar no barro é uma das nossas brincadeiras preferidas, faz nosso coração saltitar de alegria, acho que é pela mistura de sensação de liberdade, chuva na cabeça, o molhado do barro e a meleca toda. Juro, depois de um dia de barro, acho que eu fico até mais feliz.

 

A chuva estava forte, e mal dava para ver um palmo à nossa frente. Por sorte, ainda não tinha nenhum raio, era só chuva e barro, e já estávamos bolando um plano de como poderíamos brincar muito.

- Baiço, tive uma ideia! Corre para a esquerda, eu corro para a direita, aí depois a gente vira o corpo rápido e joga barro um no outro, o que acha? Quem sair mais sujo, perde – ele falou me olhando animado e já se distanciando de mim, a passos lentos, olhos arregalados cheios de alergia.

- Genial, Marquinho! Um, dois, três e... – falei enquanto já corria para a esquerda.

- Já! – ele gritou de longe.

A gente só esqueceu de combinar o quanto ia correr, pequeno erro naquele plano maravilhoso. Então resolvi correr olhando para trás, e quando o Marquinho parasse de correr, eu também pararia. O problema é que ele pensou a mesma coisa.

Ninguém parou até o chinelo do Marquinho ficar preso em uma poça e ele dar de cara no chão. Foi inesquecível.

- Marquinho! – gritei preocupado.

- Tá tudo bem, Baiço – ele levantou sorrindo com a cara toda cheia de barro, passando as mãos para limpar os olhos sujos.

Mais uma parte falida do plano foi que a vizinhança acordou com meu grito e todos começaram a ir até os portões para ver o que estava acontecendo.

A nossa rua é larga, tem umas dez casas de cada lado, todas com portões de ferro baixo, e todo mundo se conhece, o que quer dizer que “a minha fama me precede” (como diria meu avô), e as amigas da minha mãe só esperam uma oportunidade de me dedurarem para eu ficar de castigo.

Nesse ponto da nossa vida, posso dizer que eu era bem conhecido na rua e, inclusive, no posto de saúde do bairro. O que eu mais ouvia as pessoas dizerem era sobre o quanto eu aprontava e que esperavam que Deus fosse capaz de me proteger de mim mesmo. Honestamente, eu também espero por isso.

Em alguns minutos, os portões das casas já estavam com plateia, vendo meu irmão mais novo com barro até nos olhos. Era impossível não reparar nos olhares de julgamento das pessoas para mim, do tipo “Esse Maurício inventa cada uma, que ideia brincar nessa chuva”. E eu não conseguia evitar pensar o que eles iam achar se soubessem que a ideia foi toda do Marquinho.

Ainda no chão, o Marquinho estava cheio de barro e, enquanto ele se esforçava para se limpar com as mãos que também estavam imundas, ele começou a segurar a barriga, os olhos ficaram marejados e, assim do nada, ele foi tomado por uma crise de riso épica. Ele ria, chorava e se contorcia ao mesmo tempo. Eu nunca o tinha visto tão feliz.

Eu corri em direção a ele e quando cheguei perto, estendi a minha mão para ajudá-lo a se levantar. Ele segurou a minha mão com força, mas o barro misturado com a chuva que ainda caía forte fez nossas mãos escorregarem. Para ajudar, fiquei sem força e acabei desequilibrando e caindo de cara no chão também.

Estávamos os dois com barro até nas orelhas.

Fui contagiado pela crise de riso. Nós ríamos e chorávamos ao mesmo tempo.

- Marquinho, seu burro, você tinha que olhar para frente e eu ia parar quando você parasse – falei entre soluços.

- Baiço, eu pensei que você ia parar, e aí eu parava – ele se esforçou para me responder, segurando a barriga que doía de tanto rir.

- O problema é que ninguém parou - eu disse.

- É, e eu dei de cara no barro – completou o Marquinho.

Rimos até perdermos o ar.

Posso dizer que estava tudo sob controle, apesar de um pouco fora do planejado, quando eu escuto:

 

- Maurício! Pega o seu irmão e volta agora para a casa – disse a minha mãe me olhando furiosa.

 

O Marquinho é o filho preferido da minha mãe, e ela nem esconde, Eu até entendo, porque ele é demais, mesmo. Então quando ela achou que ele poderia estar em perigo, não pensou duas vezes para sair de casa e ver o que estava acontecendo.

 

A minha mãe sempre acha que a culpa é minha, e que o Marquinho é incapaz de fazer qualquer coisa errada. Como eu disse, eu até prefiro assim, mas fico imaginando como seria se ela soubesse a verdade sobre hoje.

Ela estava na frente da nossa casa, embaixo da chuva e com uma cara péssima. Os cabelos estavam despenteados, sem maquiagem e vestindo pijama e chinelos. Ela nunca sai de casa assim, mas provavelmente ouviu o grito do Marquinho e pulou da cama.

 

- Mas mãe, o Marquinho tá se divertindo, deixa a gente, vai.

- Tá chovendo e vocês vão ficar doentes, volta agora para a casa.

 

A cara dela só piorava conforme eu tentava convencê-la. As sobrancelhas estavam tão franzidas que eu juro que vi quatro riscos entre elas, formados na pele. Os olhos estavam cerrados e a boca com um bico enorme e, mesmo de longe, eu conseguia ouvi-la respirar fundo para ter o mínimo de paciência comigo na frente dos vizinhos.

 

Eu tinha esperança que conseguiria fazê-la mudar de ideia, e continuei tentando conversar com muito jeitinho.

 

- Mas mãe...

- Maurício, não tem discussão. Ou vem ou eu busco os dois.

 

Eu ainda estava tentando ganhar a discussão, quando me dei conta de que o Marquinho já estava a caminho de casa.

 

- Marquinho, não, espera.

- Não, Baiço, você ouviu a mamãe, vem pra casa.

 

O Marquinho sempre cedia rapidamente à pressão, apesar de eu sempre falar para ele confiar em mim e deixar que eu resolvesse quando a mãe nos pegasse aprontando.

 

- Não, Marquinho – falei já desolado e a caminho de casa.

 

Chegamos em casa e só pela cara dos meus pais, eu percebi que ia tomar um sermão daqueles. Eles me colocaram na cadeira da cozinha e ficaram em pé, ao meu lado. O Marquinho ficou em pé também, com as costas apoiadas na parede.

 

Minha mãe respirou fundo (pela milésima vez), contou até um milhão, colocou uma das mãos na cadeira que eu estava sentado e começou a falar o mesmo discurso que ela repete toda vez que brincamos juntos.

Ela falou que, como irmão mais velho, eu devo proteger o Marquinho. Essa é uma obrigação minha e eu não posso deixar que isso aconteça de novo.

 

- Olha para o seu irmão – ela falou, apontando para o Marquinho que estava cheio de barro, com o cabelo despenteado e um dos olhos um pouco fechados, tentando que a terra não entrasse dentro. Parecia que ele tinha saído de um conto de terror. Mas estava hilário.

Quando olhamos para o Marquinho, não conseguimos segurar a risada e todos começaram a gargalhar, até a nossa mãe, que ainda estava furiosa, mas não conseguiu resistir.

Ela respirou para parar de rir e voltou a falar que eu tenho que ter mais responsabilidade.

 

- O que os vizinhos vão pensar da gente? Meu Deus, Maurício – ela continuou.

 

Eu concordei com tudo o que ela falou e garanti que aquilo não se repetiria nunca mais (de novo), e até fiz sinal de escoteiro, para ela confiar na minha palavra.

 

Ao fim, ela reforçou que aquilo não podia se repetir (eu continuei concordando com a cabeça), pediu para eu ir para o meu quarto pensar no que eu tinha feito e que eu só saísse de lá quando ela deixasse.

Eu me levantei da cadeira e fui em direção ao meu quarto. O Marquinho veio atrás de mim.

 

- Baiço, eu não sabia o que fazer, me desculpa – ele falou, assustado, sussurrando no meu ouvido enquanto andávamos.

- Não se preocupa com isso, não, Marquinho. Valeu a pena, não valeu? – eu perguntei com a voz baixa, piscando com o olho direito.

- Sim! Foi muito bom – ele respondeu, animado.

- Então é isso que importa – falei, feliz.

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